O artigo a seguir foi enviado por um colega da área de segurança e saúde no trabalho. Trata-se de uma reflexão sobre o que nos leva a escolher, abraçar e amar uma profissão. Mais do que um texto técnico, trata-se de um testemunho sincero de alguém que ainda acredita na ética e na razão de existir de cada ser humano, na capacidade que cada um de nós tem de realizar pequenas e importantes transformações, para melhor, nesse nosso mundo tão carente.

 Jorge Queiroz dos Reis

 

 

AQUILO QUE FAÇO

 

 

Na minha forma de ver a prevenção de acidentes é algo fantástico. Talvez por isso tenha tanto fascínio por meu trabalho e lamente muito que algumas pessoas façam desta área apenas uma forma de sobreviver.

 

 

 

Tinha 23 anos quando, pela primeira vez, ouvi falar em uma profissão. Tinha também, ainda, todas as chances do mundo por uma escolha e, se não fosse esta descoberta, talvez hoje seria mais um dentre esses muitos profissionais frustrados, que enxergam no trabalho, e sua execução, apenas mais uma obrigação. Depois destes 16 anos, tenho certeza que muitas das alegrias da minha vida vieram daquilo que faço. Tive a sorte de escolher como profissão esta coisa fantástica chamada segurança do trabalho e nela coloco o que tenho de melhor como pessoa, como cidadão e mesmo como profissional.

 

De onde vem esta paixão ? Nunca soube precisar com certeza, e olha que me pergunto muito sobre isso. Entre essas buscas, num desses dias, e sem qualquer intenção ou pretensão mais definida, estava revendo fotos de família. Entre elas um foto muito antiga – talvez da década de 40 ou 50, vi meu falecido avô com um violão. Naquele momento lembrei de que, embora jamais tivesse visto meu avô tocando, sabia, pelas coisas contadas por amigos e mesmo parentes, que em tempos passados ele fora um exímio violonista e que também tocava cavaquinho. Verdade que neste momento caiu a ficha: durante os anos em que convivi com meu avô sempre observei, mas nunca questionei, a falta da parte de um de seus dedos. Verdade, também, que nos tempos idos, lembro de uma ocasião em que, morando no Rio de Janeiro e meus avôs no interior de São Paulo, houve um momento de apreensão em casa quando, pelo telefone, minha mãe ficou sabendo que meu avô havia perdido parte de um dedo, na fábrica onde trabalhava. E deste momento em diante, depois de lembrar deste fato, parece que uma porta do inconsciente abriu-se em mim e comecei a lembrar do tempo em que, sendo leigo no assunto e assim tendo a mesma visão que a maioria das pessoas tem, ouvia tanto falar em acidentes com pessoas. Mas aquilo era, para mim, não mais do que uma noticia. Eu, como tantos outros, não conseguia associar a imagem de uma acidente às conseqüências deste fato. Sim, tive amigos de infância e juventude que perderam os pais na guerra do trabalho. Mas eu não sabia nada sobre isso, vivia e crescia como a maioria dos seres, que associam trabalho apenas à prosperidade, à vida melhor, à casa, ao carro, à mulher bonita que virá, aos filhos.....o trabalho como vida e não como morte.

 

No primeiro dia em que entrei na sala de aula do curso, então chamado ainda de "Supervisor de Segurança do Trabalho", jamais havia posto o pé dentro de uma fábrica. Minha família, pequena, tinha como atividade até um determinado tempo a carreira militar de meu pai. Depois tivemos uma pequena construtora. Ninguém do meu mundo direto tinha ligações, quando já passei a me entender como gente, com o ambiente fabril. Pouco depois daquele primeiro dia eu estava literalmente apaixonado por tudo aquilo que via e, como sempre faço com que o gosto até hoje, embrenhei-me na busca do conhecimento. Sempre penso neste tempo com duas formas de visão, a primeira me diz que se tivesse algum conhecimento prévio talvez pudesse ser ela aquele endurecimento que a vida trás as pessoas e chegasse até ali já descrente e apenas fazendo mais um curso tencionando apenas algum tipo de melhoria de vida. Na Segunda forma, penso que foi bom demais ir ao curso sem conhecer este mundo, trazendo para dentro de mim apenas a figura ideal, buscando nas bibliotecas e nas poucas empresas que abriam as portas, conhecimento puro, a prevenção na forma que deveria ser, que as pessoas delineavam e mal sabia eu, raramente saia do papel.

 

Curso concluído, não havia mesmo oportunidades. Naquela época não existia estágio, e eu via o que mais tarde poderia ser chamado de dilema "Tostines", não tinha emprego porque não tinha experiência e não tinha experiência porque não tinha emprego. Daí que dediquei-me mais ao estudo da questão e como os livros sobre o assunto sempre foram poucos (e continuam sendo), dediquei-me a ler sobre psicologia aplicada ao trabalho, Medicina do Trabalho e tudo mais. Enquanto isso e simultaneamente enviava curriculuns. E um dia um telegrama chegou.

 

O telegrama convidava para uma entrevista num determinado hotel no centro antigo de SP. Confesso que nunca tive tanta ansiedade em minha vida. Vim para SP com a sensação de quem está entrando na vida. Fiz um teste teórico extenso e acertei todas as questões. Diante disso e após a entrevista informaram que deveria ir a Belo Horizonte e que lá seriam feitos os acertos. Peguei um ônibus e fui embora, o mundo parecia sem limites e mais tarde saberia que realmente o limite é algo muito distante. Dormi em Belo Horizonte e na noite seguinte já estava dormindo em Marabá, no Estado do Pará. Era um Brasil novo para mim, mas nada mais importava, eu finalmente era de verdade um profissional de segurança do trabalho, podia dizer isso a quem e quando quisesse, como tenho tanto orgulho de dizer até hoje Deste distante tempo até hoje muitas coisas aconteceram. O sonho foi se tornando cada vez mais realidade e jamais deixei que aquilo que faço fosse algum dia apenas uma profissão. E mesmo diante de todas as dificuldades, que não foram poucas, e vendo as vezes as facilidades e oportunidades que outras profissões propiciam, tenho certeza em dizer que se hoje tivesse que começar tudo de novo, carregaria sim aquele apostila de 1000 folhas da FUNDACENTRO, iria de novo longe ou ate mais longe, porque há algo nisso tudo que me parece muito mágico e mais do que isso, mesmo que muitas vezes ninguém nos reconheça, dentro de mim tem algo que diz com certeza que o que faço é importante demais.

 

QUE PROFISSÃO E ESTA ?

Durante muitos anos e até hoje esta pergunta ainda é comum. O que você faz mesmo ? Você é da CIPA ?
E com paciência, quando noto que a pergunta merece resposta e que a resposta vai servir aos propósitos prevencionistas, não me furto de explicar com detalhes. Mas não para aí: tempos atrás fui convidado a jantar num clube de serviço. Todo contente cheguei ao estacionamento e ao parar meu carro, como bom observador até pela força do hábito e do oficio, olhei em volta. Uma coisa me incomodou: muitos dos carros tinham nos vidros adesivos que demonstravam a profissão do proprietário. Fiquei triste por um instante, mas me recompus e entrei, mas já com a idéia na cabeça de no dia seguinte, na primeira hora providenciar para que meu carro tivesse um adesivo com uma cruz verde e escrito bem grande : Técnico de Segurança do Trabalho. E foi mesmo o que fiz, quem é do Vale do Paraíba lembra que dei a muitas pessoas um adesivo, igual ao que até hoje tenho no meu parabrisa. Tempos depois fiz algumas camisetas, que também traziam escritas a mesma coisa.

 

PORQUE TUDO ISSO ?

 

A vida é mesma feita de porquês. E depois de todos esses anos, algumas coisas me entristecem muito dentro da Segurança do Trabalho. A primeira e maior delas, não é o descaso que os outros profissionais tem com nossa atividade, mas o descaso que muitos de meus colegas tem com aquilo que fazem. É gente que não percebe que veste a camisa de um time e nada faz por ele. E gente que só pensa em si, que jamais parou por um instante que fosse ou ao menos tentou fazer algo que fosse pelo todo, pela categoria, pelo objetivo em si da questão prevencionista. Se algo faz mal à prevenção, este algo tem grande parte destas pessoas e sua forma de agir. Gente que não tem compromisso com nada que não seja seu imediatismo e mera sobrevivência. Sim há muitas coisas nobres na face da terra e em meios sociais, e aquilo que fazemos não deixa em nada a desejar a esta nobreza. Se soubéssemos ver além do mínimo, com certeza hoje a prevenção de acidentes ocuparia o espaço devido, o espaço do departamento, da seção, do serviço que cuida a prevenção, da vida das pessoas dentro dos locais de trabalho. Mas que nada ! Continuamos nos porões, como quem vive apenas pelo favor e a mercê das leis. Continuamos sem saber quem somos, a que viemos e de fato o quanto podemos ser úteis tanto para aquela empresa como para o mundo onde vivemos. Parem por um instante e pensem na mágica da vida ! Deixem de lado todo conhecimento técnico. Vislumbrem o mundo ! Vejam quantas pessoas foram a frente e chegaram onde estão, seja profissionalmente, seja na formação de uma família, seja na carreira política, tão e simplesmente porque sobreviveram dentro dos seus locais de trabalho. Sem modéstia, pensem quantos poderiam não ter chegado se não estivéssemos lá, se não tivéssemos muitas vezes posto o emprego em risco ou mesmo perdendo a forma de sustento dos nossos, para que houvesse uma proteção, para que EPIs fossem entregues, para que através disso tudo a continuidade da vida fosse possível.

 

 

 

 

 

 

Embora tudo isso seja muito bonito e mesmo real, nem todos estiveram ou estão nesta história. Muitos aliás apenas passaram, não importa por quanto tempo, para a mediocridade tempo é algo que não conta e jamais fizeram, qualquer coisa que não fosse apenas omitir-se, esconder o rosto, transformar a possibilidade de mudanças em nada. Com certeza muito se perdeu com isso, alguns morreram, outros ficaram inválidos total ou parcialmente, mas com certeza quem assim agiu e age, perdeu também o trem da história.

 

A HISTÓRIA SE REPETE

 

Chegamos aqui por muitos caminhos. Como todo profissional desta área, destes que tem orgulho do que fazem e não deixam o rabo preso, há muita história para contar. E mesmo que o passado ensine vamos sempre dando de frente com gente que ainda insiste na forma medíocre de ser. Fica claro neste momento que precisamos separar o joio do trigo, afastar estas pessoas daquilo que de fato jamais as interessou. Precisamos em nossa comunidade, em nossos times, de gente que acredite na segurança, porque já nos bastam os descrentes de fora e alheios a nossa realidade. Precisamos de gente que não tema acreditar no que parece insólito, ou seja, que as pessoas tem direito a vida e saúde, independente de qualquer coisa que seja. Precisamos de gente com ouvidos e mentes de prevencionista e que assim, conheçam e saibam por cultura de tudo que ocorre no mundo, que tente ao máximo cooperar para que a modernidade se estabeleça na sua empresa e assim garanta-se a sobrevivência do negocio, MAS QUE EM MOMENTO ALGUM, isso fale mais alto do que a garantia da vida de uma pessoa que seja. Precisamos de gente assim, com compromisso com a questão prevencionista.

 

Difícil supor que outras pessoas pensam que somos necessários, quando mesmo nossas ações demonstram ao contrário. No espaço que há entre o sonho e a realidade, resta-nos ainda em muitos casos, sobe pena de perdermos vidas se agirmos ao contrário, situações onde nossa presença é a garantia da existência de condições mínimas de segurança. Onde há um trabalho de risco, devemos estar. E mesmo assim, espalham-se pelo mundo aqueles que dão as costas a estas situações. Limitam-se ao papel, a escrever como se fossem meros tradutores da legislação em coisas supostamente compreensíveis. Estranhamente muitos destes estão entre aqueles que nas conversas entre colegas debulham a dizer que no Brasil há necessidade de educar para a prevenção e quando podem faze-lo.....omitem-se.

 

Estranho dizer que pouco a pouco muitos SESMT entregam-se espontaneamente ao desvio de função. Nada contra, quando isso é uma possibilidade, tudo contra quando se negligencia a função principal, original e fiel do SESMT, para assim fugir das obrigações inerentes e esbaldar-se em shows e eventos que nada tem haver com nossa missão. Mas parece que vivemos no tempo do dizer sim, no entanto fiquem atentos, porque toda essa maleabilidade pode custar caro demais e embora momentaneamente possa parecer o caminho mais suave com certeza em pouco tempo tornar-se-a o caminho da rua.

 

 

 

Tenho entre meus amigos pessoais, uma pessoa que é Gerente de Qualidade de uma grande empresa. Nos idos de 80 ele era um técnico de eletrônica. Um dia, na empresa onde estagiava, houve necessidade de embalar uma certa quantidade de peças que seriam enviadas a um cliente. Pediram então aos estagiários que o fizessem. Todos aceitaram, este amigo negou-se. E tendo feito, foi para sua sala pegar suas coisas. E quando ia saindo encontrou um Diretor da empresa, que perguntou onde ele ia, quando respondeu que ia embora, afinal de contas havia se negado a cumprir uma ordem, que entendia que a função dele era eletrônica. O Diretor pediu que ele ficasse, dois dias depois foi efetivado, 8 anos depois era Chefe de Departamento e logo em seguida seu passe foi comprado a peso de ouro por uma grande e conhecida empresa, onde hoje, já como engenheiro e Gerente dá-se ao luxo de viajar o mundo. Na verdade com isso quero dizer, que as pessoas talvez não entendam que muitas vezes o levantar de cabeça é uma atitude mais compatível e que contribui mais com a empresa do que concordar com tudo pura e simplesmente.

 

POR FIM...

 

Há anos venho dizendo às pessoas: "Ou nos valorizamos ou ninguém fará isso por nós !" Muitas delas não acreditam nisso e ficam esperando uma nova Lei que diga que o SESMT tem valor. Morrerão esperando. Outras, pena que uma minoria, foram a luta e encontraram seu lugar ao sol. Será que as pessoas não prestam atenção nisso ? Será que olham para os organogramas das empresas e não notam que falta por ali alguma coisa importante ? Parece que não. Parecem que a briga pelas migalhas interessa mais do que o vôo da gaivota.

 

Voltando ao começo disso tudo, naquela história toda eu fico aqui pensando que a vida toda se fez de encruzilhadas e ainda se faz, que a escolha lado a ser seguido sempre foi pela oportunidade de fazer algo e o receber algo não foi mais do que um conseqüência. Fecho os olhos e vejo o amigo que há 15 anos estudava Engenharia nos tempos vagos, acreditou e hoje........hoje tem brilho nos olhos não só de profissional, mas de homem que chegou. Procuro saber onde estão aqueles que me diziam – deixa disso – isso sempre foi assim – no Brasil não tem espaço para a prevenção – cuidado – trabalhador gosta mesmo de se machucar.......enfim, uma série de palavras e pessoas que ficaram no tempo.

 

Daqui para o futuro, há um caminho. Tudo bem: outros tempos, outras modas...mas prestando a atenção dá para ver que a história varia mas não muda sua base. Como gostaria de ver o SESMT no seu lugar merecido

 

 

Cosmo Palácio de Moraes Junior

Técnico de Segurança do Trabalho

04/02/00 21:20:12